Dezenas de milhares de
migrantes sul-americanos chegaram ao Brasil a partir dos anos 1990, de forma
lenta e contínua. Ou talvez centenas, não se sabe bem. Deles ouvimos falar
pouco e, em geral, pejorativamente. Por exemplo, quando dos incontáveis flagrantes
de trabalho em condições análogas à escravidão. De regra, dos países mais
pobres da América Latina não conhecemos mais do que os estereótipos de sua
história, literatura, música ou gastronomia.
Com
a crise econômica no Velho Continente, nos últimos anos cresceu igualmente a
migração de europeus. Mas foi a recente chegada de alguns milhares de migrantes
negros que
levou a política migratória brasileira à pauta das grandes redações, quase
sempre apresentando a migração como "problema" ou "crise" a
solucionar.
“Fechar
as fronteiras” para a imigração em um contexto de intensa mobilidade humana e
enorme desigualdade entre os países não tem ajudado a diminuir as migrações,
apenas tem ajudado a tornar os trabalhadores imigrantes mais vulneráveis à
exploração e ao preconceito. Na Europa e nos Estados Unidos,
a crueldade tem sido inversamente proporcional à dissuasão, como bem demonstram
os naufrágios na costa italiana e as crianças da América Central que caminham a
pé até a fronteira norte-americana. A boa notícia é que o ser humano, mesmo nas
condições mais adversas, não desiste de tentar uma vida melhor. Os migrantes só
deixarão de vir quando o Brasil deixar de ser uma potência emergente.
Assim, as migrações
internacionais, outrora dirigidas ao Norte, hoje repartem-se quase igualmente
entre Norte e Sul. Além disso, uma política migratória restritiva implicaria,
no caso das porosas fronteiras do Brasil, um investimento descomunal no
aparelho de segurança, em detrimento das políticas públicas que nos fazem tanta
falta.
Por
outro lado, desde que os haitianos chegaram às
manchetes, diante da opinião pública a migração e o refúgio
parecem ser a mesma coisa, embora nomeiem processos bem distintos. Enquanto o
migrante se desloca por vontade própria, quase sempre em busca de trabalho e
vida digna, o refugiado teme por sua integridade física e moral caso permaneça
em seu país de origem. No entanto, como a lei vigente no Brasil não permite que
os estrangeiros em busca de emprego – ou que trabalhem no mercado informal,
como quase metade dos brasileiros – permaneçam regularmente no país, muitos
deles são levados a solicitar refúgio apenas para ter algum documento (o
protocolo do pedido), esperando conseguir um emprego até a esperada resposta
negativa do Estado brasileiro.
Ocorre que nem um emprego
aqui conquistado será garantia da regularização migratória, pois no Brasil, em
relação ao estrangeiro, o Estado tudo pode. Para os imigrantes, a ditadura
civil-militar brasileira (1964-1985) é bem mais do que uma lembrança. A eles se
aplica o Estatuto do Estrangeiro (Lei n. 6.815), assinado pelo general João
Figueiredo em 1980, cujas principais características são o alto grau de
restrição e burocratização da regularização migratória, a discricionariedade
absoluta do Estado, a restrição dos direitos políticos e da liberdade de
expressão, além de explícita desigualdade em relação aos direitos humanos dos
nacionais.
É
verdade que, à margem da lei, ocorreram avanços no Brasil, e acomodações entre
a lei e a realidade migratória foram produzidas. Sem a revogação do Estatuto do
Estrangeiro, contudo, não há como evitar um serviço à la carte. É o caso das
empresas que desejam trazer trabalhadores estrangeiros, para quem o governo tem
facilitado a tramitação dos pedidos de autorização para trabalho. Promove,
assim, a migração seletiva tão sonhada pelos setores que necessitam de
"mão-de-obra qualificada". Detalhe: a ser descartada quando não mais
for necessária.
Cabe, então, questionar:
quem ganha com a dificuldade de regularização migratória, além dos coiotes? No
terreno da mistificação, talvez haja sentido em tornar impossível ou sofrida e
lenta a regularização migratória.
Há quem tema uma invasão
estrangeira, embora, apesar do fluxo contínuo de migrantes nos últimos dez
anos, em pleno 2014, as maiores estimativas da presença de estrangeiros no
Brasil não ultrapassem o percentual de 0,5% da população, muito menos do que os
cerca de 1% de brasileiros que teriam emigrado para o exterior. Há quem
confunda estrangeiro e criminoso, embora não exista estudo sério que comprove
maior criminalidade entre os estrangeiros, em lugar algum do mundo. Ademais, a
lei penal é igual para todos, dela não escapando nem brasileiros, nem
estrangeiros.
Num país pródigo em surtos
de dengue e endemias diversas, outro mito é de que os estrangeiros nos trarão
doenças. Há até quem fale como se os estranhos, sobretudo se forem pobres e
pretos, nos fossem roubar o paraíso. Trocando o mito pela realidade, nós que
vivemos num país marcadamente desigual, onde campeiam violência, machismo,
racismo e homofobia, temos uma grata surpresa: apesar de tudo, há quem aqui
veja esperança e oportunidade de trabalho.
Em contrapartida, há quem
calcule dividendos políticos ao atender demandas de setores específicos; para
não olvidar os que costumam explorar a vulnerabilidade adicional dos
estigmatizados como “clandestinos”.
Nas diferentes esferas
federativas, o Estado também padece com a falta de uma lei decente. Não há
estatísticas confiáveis sobre migrações, pela óbvia razão de que a situação
irregular convida à sombra. O custo político também é elevado para os
governantes, obrigados a enfrentar os fluxos pontuais de migrantes sem o devido
amparo legal, o que acarreta grande desgaste para todos os envolvidos, como foi
o caso na chegada dos haitianos ou dos ganeses. Sem o intenso trabalho de
entidades sociais, alguns desses fluxos pontuais se converteriam em verdadeiras
crises humanitárias.
Por
tudo isto, o Ministério da Justiça criou uma comissão de especialistas que,
depois um ano de trabalho, e sobretudo de escuta das instituições públicas e
das entidades sociais que se ocupam do tema das migrações no Brasil, apresentou
um anteprojeto
de lei de migrações.
A palavra estrangeiro é
substituída por migrante. O ideário da segurança nacional dá lugar ao
alinhamento da lei com a Constituição Federal de 1988 e os tratados
internacionais de direitos humanos em vigor no Brasil. Uma autoridade
migratória civil passa a se ocupar da regularização migratória, facilitada e
desburocratizada, tornando possível que um migrante aqui permaneça regularmente
por até um ano em busca de emprego. Os direitos entre nacionais e migrantes são
equiparados, nos limites da Constituição.
Caso prospere, o
anteprojeto honra uma dívida histórica do Brasil para com os migrantes que
contribuíram, de modo decisivo, com seu desenvolvimento. Honra também a
democracia, eliminando mais um entulho autoritário que parasita o presente e
hipoteca o futuro do país.
Esperamos que, em breve, o
Brasil se torne um exemplo de política migratória inclusiva, explorando todo o
potencial da mobilidade humana internacional a seu favor. As migrações
constituem um terreno privilegiado para que o Brasil se transforme num novo
tipo de potência, abrangendo em suas políticas públicas os migrantes, e deles
colhendo, mais do que seus impostos e sua força de trabalho, sua extraordinária
riqueza cultural. A que sabemos discernir facilmente nos europeus pobres que
aqui aportaram no passado, assim como nos ricos que hoje chegam, mas que nossos
preconceitos, também importados, dificultam que a reconheçamos naqueles que
mais se parecem conosco.
Por Deisy Ventura e Rossana Rocha Reis